quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Que salas de cinema nós queremos?

No site da Ancine, há uma notícia recente com a seguinte manchete:
"ANCINE credencia onze projetos envolvendo 240 salas de cinema no RECINE - Projetos de construção, instalação, modernização e digitalização nas cinco regiões do país se beneficiarão com desoneração tributária".
Em primeiro lugar, é uma boa nova o Estado estar investindo na ampliação do circuito exibidor nacional, já que, tradicionalmente, os recursos são voltados exclusivamente para a produção de filmes, sem atentar para os gargalos da distribuição e exibição. Sabemos que o número de salas de cinema no Brasil é pequeno em relação a outros países e insuficiente para atender à demanda de lançamentos. É verdade que isso também se deve à atual estratégia de lançamento baseanda na maximização de divulgação e de cópias para poucos filmes. Se não houver intervenção também no setor de distribuição (por exemplo, no taxamento progressivo por número de cópias), talvez tenhamos mais cinemas passando os mesmos poucos filmes, exatamente como ocorre hoje.
Talvez esteja aí uma questão controversa. O apoio do governo para o setor de exibição - através de dinheiro público via isenção de impostos - deve se voltar para as grandes empresas exibidoras que investem na "modernização" e "implantação" de complexos multisalas em shoppings?
Em primeiro lugar, se um dos grandes problemas é a ausência ou escassez de salas em municípios de médio e pequeno porte, por que dar dinheiro para a construção de mais cinemas nos grandes centros urbanos do país onde já existem outros complexos como estes? E, sobretudo, para a construção de cinemas sabidamente caros e elitistas que atendem somente às classes médias e altas que frequentam a maior parte dos grandes shopping centers?
Além disso, quando se fala em "modernização", quase sempre isso implica em digitalização das salas no padrão DCI (2k ou 4k), requisito mínimo para a exibição de filmes de Hollywood em formato digital. Se nos EUA a digitalização das salas (hoje quase completa) se deu através de financiamento privado das próprias distribuidoras (as maiores beneficiadas pela redução de custos do digital), por que no Brasil está se usando dinheiro público para isso? Será que é auxiliado pela campanha alarmista e terrorista da imprensa de que o Brasil está "atrasado" na digitalização, com apenas 30% do circuito convertido contra 70% da média mundial (ver MIRANDA, André. Governo promete digitalização de cinemas até 2014. O Globo, 2 fev. 2013, p. 3).
Por que empresas como a Box Cinema do Brasil precisam de incentivo fiscal para digitalizar suas salas de shopping? Afinal, esse processo não seria lucrativo para ela, que poderá começar a exibir filmes em 3D digital por ingressos mais altos? Caso não seja, isto é, não se constitua em algo viável ou interessante economicamente, qual seria a justificativa cultural para haver incentivo do governo nessa direção?
Isso me lembra projetos executados por diversas Secretarias de Cultura e Educação de vários municípios e estados do país de pagar para que estudantes das redes públicas frequententem os cinemas, geralmente em sessões de filmes brasileiros. A intenção é boa, evidentemente, mas não é algo tão simples. Se os filmes já são feitos com recursos públicos, o Estado agora subvenciona que o público brasileiro veja esses filmes no "circuito comercial"? Não parece um contrassenso o Estado, além de pagar para o filme ser feito e ser visto, que ele, mal ou bem, subvencione o circuito exibidor comercial feito para dar lucro? Se é comercial, não precisa de subvenção, certo?
Isso me leva à seguinte questão: o investimento na ampliação do circuito exibidor brasileiro é positiva, mas deve se dar no sentido de uma democratização do acesso às salas de cinema pelo grande público, e isso talvez signifique uma outra visão das salas de cinema. Da mesma forma que temos que ser criativos e pensar em alternativas para o modo de produção e para a linguagem dos filmes brasileiros produzidos nas condições específicas do nosso país, por que vamos investir num modelo centralizador e elitista implantado pelo mercado internacional para o circuito exibidor?

Se a questão não é só econômica, mas também cultural, por que não investir na modernização, consolidação e ampliação de um circuito crescente de salas de rua públicas, incluindo muitos cinemas de grande importância histórica que vêm sendo tombados ou adquiridos por instituições públicas em todo o país? No Rio de Janeiro, por exemplo, a Rio Filme anunciou (mas não deu mais detalhes) a compra de antigos cinemas do subúrbio, como o belíssimo Cine Vaz Lobo, por exemplo. No centro da cidade, temos o caso do quase em ruínas Cinema Plaza. Em Niterói, a Universidade Federal Fluminense e a Prefeitura adquiriram o Cinema Icaraí, belo exemplar do art déco dos anos 1940.
São todas salas que precisam ser modernizadas e que representam o resgate da história (por sua arquitetura, por exemplo) e da sociabilidade democrática que o cinema um dia se gabou de possuir (de portas voltadas para as ruas mais movimentadas das cidades, abertas para qualquer transeunte disposto a pagar um ingresso relativamente mais barato do que o que existe hoje).
Ainda em Niterói, muito se discute sobre o destino dos cinemas projetados para o Museu de Cinema cujo prédio projetado por Niemeyer e financiado pela Petrobrás ainda não foi inaugurado (ver aqui e aqui). A prefeitura diz não ter dinheiro para construir e manter as salas de cinema previstas. Mas construir esses cinemas numa área frequentada por universitários, com uma programação distinta daquela dos shoppings, não seria um dinheiro que a Ancine daria um uso muito mais interessante?
Para isso, porém, é preciso articulação do governo em suas várias instâncias, assim como a participação da sociedade civil, pois, senão, a verba vai para mais salas de shopping, quando o que cada vez mais falta são opções aos multiplexes que por aí já existem.

3 comentários:

JLVieira disse...

O texto é claro e muito bem argumentado. A impressão que se tem é que, baseado em experiências e vivências anteriores, corre-se mesmo o risco do Estado subvencionar e promover a modernização de salas para os grandes complexos exibidores se locupletarem e mostrarem sempre os mesmos filmes...Aumenta-se o número de salas com o nosso dinheiro, para a exibição de mais do mesmo--tanto internacional (leia-se Hollywood) quanto nacional (leia-se Globofilmes). Faz-me lembrar de um momento, há não muito tempo atrás, com a entrada de grupos como Cinemark onde a construção dos complexos em shoppings (a tal de modernização de uns 15 anos atrás) era tb feita com dinheiro público. E para trazer materiais de fora quando poderiam ser feitos aqui empregando mão de obra e materiais locais. Me refiro às vitrines de vidro para colocação dos cartazes, cujas molduras elaboradas, de um material que procurava se assemelhar a bronze, ou algo "nobre", eram manufaturadas nos EUA...quando poderiam perfeitamente ter sido feitas aqui no Brasil). Se não me engano, as peças dos banheiros, pias, privadas, também vinham do exterior...Assim fica muito fácil "modernizar"o mercado exibidor por aqui.

Anônimo disse...

Eu passei por uma experiência interessante, ao tentar assistir um filme nacional no Bay Market, em Niterói. Era quase impossível concentrar-me no filme, com vários jovens uniformizados fazendo piadas, tirando fotos deles mesmos com o celular, etc. Ao final da sessão, perguntei a um pequeno grupo que permaneceu na sala (a debandada foi geral já nos primeiros minutos do filme)se eles tinham ido ver o filme porque os professores haviam "obrigado", ou algo semelhante. Um deles me respondeu: não, é que o governo deu o ingresso... Martha.

Rafael de Luna disse...

LEI Nº 12.599, DE 23 DE MARÇO DE 2012.

Art. 11. A construção e a implantação de complexos de exibição cinematográfica, nas condições, cidades e zonas urbanas estabelecidas pelo regulamento do Programa Cinema Perto de Você, poderão ser apoiadas por linhas de crédito, investimento e equalização de encargos financeiros, sustentadas pelos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, criado pela Lei no 11.437, de 28 de dezembro de 2006.
Parágrafo único. As linhas mencionadas neste artigo deverão considerar, na avaliação dos projetos, os seguintes fatores, entre outros:

I - localização em zonas urbanas, cidades e regiões brasileiras desprovidas ou mal atendidas pela oferta de salas de exibição cinematográfica;

II - contribuição para a ampliação do estrato social com acesso ao cinema;

III - compromissos relativos a preços de ingresso;

IV - opção pela digitalização da projeção cinematográfica; e

V - parcerias com Municípios, Estados e Distrito Federal.