segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Plano Nacional de Preservação Audiovisual

Participei hoje, no Festival do Rio, de uma mesa sobre preservação audiovisual, tematizando a restauração do filme "É um caso de polícia" (Carla Civelli, 1959), em homenagem ao restaurador Francisco Moreira e organizada pelo Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro (CPCB).

Para além da preocupação que sempre cerca o tema da preservação da memória do audiovisual brasileiro, o evento de hoje tinha um ar de especial tristeza com a situação que o país vive atualmente.
Por isso, mesmo não atualizando sempre o blog, fiz questão de fazer esse post para lembrar que foi finalizado, em junho desse ano, durante a Mostra de Cinema de Ouro Preto, um PLANO NACIONAL DE PRESERVAÇÃO AUDIOVISUAL. Ou seja, a sociedade civil organizada, reunindo profissionais e representantes de instituições, debateram e, ao longo de meses, redigiu uma proposta para a construção de uma política para a área de preservação audiovisual.
Portanto, um plano já existe. Falta agora vontade política dele ser colocado em prática. E podemos cobrar isso a quem é de direito.
O plano pode ser acessado aqui.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Incêndio na Cinemateca - 2

Apesar do blog não estar sendo atualizado tão frequentemente quanto devia, a questão do incêndio na Cinemateca Brasileira não poderia deixar de merecer mais um post. Sobretudo quando, alertado pelo colega Mateus Nagime, descobri que a Secretaria do Audiovisual (SAv), muito discretamente, publicou em seu site um relatório das perdas ocorridas na tragédia do início desse ano (veja aqui e aqui). Apesar da discrição, é elogiável a rapidez da apresentação pública de um relatório, uma vez que a data do comunicado oficial da SAv sobre o incêndio foi publicado em 3 de fevereiro de 2016, e o relatório já estava no site em 11 de abril de 2016. Diferentemente das falas públicas apressadas feitas na ocasião, minimizando as perdas ao se dizer coisas como "quase todo o material perdido tem cópias que correspondem diretamente aos originais, sem perda de qualidade", nas palavras do então secretário-executivo do MinC, João Brant, o relatório traz dados mais confiáveis.
Através do relatório ficamos sabendo que foram queimados 1.003 rolos de filmes de nitrato, correspondendo a 731 títulos, praticamente todos em Preto e Branco e 35mm. A grande maioria desses rolos tinha entre 5 a 10 minutos de duração, sendo que 98,1% eram de cinejornais - o que é compreensível, uma vez que a maior parte dos filmes brasileiros produzidos e preservados até a década de 1950 (a era da película de nitrato, cujo depósito foi o atingido pelo incêndio) era de filmes documentários. Como esperado, sabemos que se queimaram sobretudo negativos de imagens de vários cinejornais, que são consideradas suas matrizes de preservação.
Uma parte dos materiais  incendiados tinha outras cópias no acervo, embora sua qualidade ainda não tenha sido checada e apresentada no relatório, que admite que essas cópias podem estar em "película, vídeo ou digital". O mais triste, é claro, são as obras que não possuíam outras cópias no acervo. Esses rolos queimados representavam as únicas manifestações dessas obras, que passam a ser dadas como inteiramente perdidas por não existir nenhuma outro material desses títulos preservado atualmente.
A partir dos números do relatório, chegamos à seguinte porcentagem:
  • 63% dos títulos queimados tinham outras cópias. 37% dos títulos desapareceram. 
  • 60,5% dos rolos queimados tinham outras cópias. 39,5% dos rolos eram de obras agora consideradas perdidas.
  • 62,5% da metragem total de filmes queimados tinha outros materiais. 37,5% da metragem total era de filmes sem nenhuma outra cópia.
Assim, podemos dizer, com segurança, que cerca de dois quintos do que foi perdido no incêndio eram de filmes brasileiros dos anos 1930 e 1950 que a sociedade brasileira nunca mais vai poder ver e rever.

Ao meu ver, dois quintos de perda irremediável, ou pouco menos de 40%, é algo muito distante de dizer irresponsavelmente que "quase todo o material" estava copiado. E sobre esses filmes agora desaparecidos, restam apenas informações muito pontuais e vagas sobre seu conteúdo a partir de títulos ou descrições como "Presidente Getúlio Vargas visita Uberaba", "Parada da Juventude de 1941", "Contrato DCB e Vera Cruz" (o que devia ser isso!?), "Certame automobilístico - Circuito da Gávea - 1936" etc. Pior do que eles terem se perdido, é o fato deles desaparecerem sem terem circulado amplamente nos últimos anos, sem sequer terem sido vistos quer por cinéfilos, historiadores ou pesquisadores, numa mesa enroladeira que fosse. Nem a memória da visão desses filmes sobreviveu.
Como eu disse no post anterior, a responsabilidade por existir esse enorme volume de filmes de nitratos sem nenhum tipo de cópia no acervo da Cinemateca Brasileira é certamente uma responsabilidade a ser compartilhada por todas as gestões recentes da instituição, cujos esforços deveriam ter sido, pelo menos em grande parte, mobilizados para duplicar suas matrizes de nitrato. Devemos lembrar que esse foi um esforço feito pelos principais arquivos de filmes há décadas atrás. Como aponta Anthony Slide, no final dos anos 1960 foi lançado, inclusive, o slogan "nitrate won't wait" (o nitrato não pode esperar), acreditando-se ser necessário duplicar todos os materiais nesse suporte que não iriam sobreviver até o século XXI.
Posteriormente, essa visão fatalista foi reconsiderada, percebendo-se que, nas devidas condições de armazenamento e com revisão constante, a película de nitrato podia apresentar uma estabilidade maior do que se imaginava. De fato, muitos nitratos brasileiros chegaram até 2016, por exemplo. Mas com a interrupção dos trabalhos necessários de análises do acervo entre meados de 2013 e 2014, como apontado pelo relatório, alguns dos nitratos da Cinemateca Brasileira chegaram ao seu limite e entraram em autocombustão no início desse ano. Assim, não se pode deixar de apontar que foi uma irresponsabilidade que a Cinemateca Brasileira - e o Estado Brasileiro, sobretudo, na figura da Secretaria do Audiovisual - não tenham se esforçado o suficiente, especialmente num momento de alardeada pujança, em fazer nos últimos anos o que sempre foi tido como a tarefa básica de qualquer cinemateca: salvaguardar o patrimônio audiovisual.
No último encontro da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), em junho passado, em Ouro Preto, fiquei sabendo que está em curso um programa de duplicação de matrizes na Cinemateca Brasileiro. Ótima notícia. Antes tarde do que nunca. Mas por que sempre precisamos esperar uma tragédia para fazermos o que já devia ter sido feito tempos atrás?

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Incêndio na Cinemateca

Por volta das 6h da manhã da quarta-feira passada, dia 3 de fevereiro de 2016, um incêndio atingiu uma das quatro câmaras do depósito de nitratos da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Os jornais e televisões deram a notícia, informando que os demais prédios não tinham sido atingidos e que o fogo foi controlado em pouco tempo. Apenas um bombeiro sofreu intoxicação com a fumaça e ninguém mais foi ferido.
A Cinemateca e o Ministério da Cultura emitiram notas oficiais. Nela diziam: "Cerca de 1.000 rolos de filmes foram queimados. Deste total, a grande maioria está conservado em outras mídias/suportes. Os filmes destruídos estavam todos em domínio público e o levantamento da pequena parte afetada, sem duplicação, será informado pela Cinemateca nos próximos dias".Outra nota dizia que cerca de 80% do material atingido tinha sido duplicado. Isto é, 20% dos 1.000 rolos podem ter desaparecido para sempre. Informaram ainda que os rolos eram de um longa metragem e de diversos cinejornais.
Reproduzo abaixo um comentário que fiz nas redes sociais sobre o ocorrido.


O incêndio da última madrugada na Cinemateca Brasileira poderia ter sido pior, mas ainda sim foi uma grande tragédia. A partir de meados do século XX, vários pioneiros da preservação se esforçaram para reunir o que ainda existia da memória do cinema brasileiro. Quase tudo já tinha se perdido, mas o que conseguiu ser salvo nos cerca de vinte anos seguintes foi grande parte do que chegou até os dias de hoje. E ontem uma parcela disso se perdeu. Sim, grande parte já tinha sido copiada para outros suportes. Mas como foi copiado, com qual qualidade? A copiagem dos filmes em nitrato começou a ser feita pioneiramente pela própria Cinemateca Brasileira há mais de trinta anos e, como no mundo todo, se priorizou a quantidade e não a qualidade. Muito foi copiado para acetato em 16mm e sem muitos dos avanços posteriores que ajudaram a reproduzir a qualidade dos nitratos nos contratipos e másteres de segurança. Mas o pior é que uma parte do que se perdeu não tinha sido copiada ainda. Provavelmente eram filmes que nem os estudiosos e pesquisadores conheciam ou tiveram acesso nos últimos anos. A crise atual na Cinemateca tem um papel direto nessa tragédia, mas não se pode responsabilizar exclusivamente os dirigentes atuais, imersos em problemas de falta de pessoal e de recursos. Aliás, é preciso elogiar a resposta imediata do governo na divulgação dos danos e cobrar deles mais detalhes sobre o que foi perdido. Entretanto, cabe a reflexão sobre como no passado recente, quando a Cinemateca gozou de fartos recursos financeiros, não houve o esforço em alcançar a meta que todos os arquivos de filme do mundo vem tentando atingir desde os anos 1970, pelo menos, que é copiar todos os filmes de nitrato para suportes mais seguros (mas sem descartar as matrizes). Como isso não foi uma prioridade absoluta nos anos de fartura, sobretudo sabendo que o número de nitratos brasileiros não é tão grande? Por que eles não foram todos digitalizados nos anos antes da crise? Isso não teria evitado a perda, mas minimizado a tragédia. Nossa memória cinematográfica é tão reduzida que não podemos nos dar o luxo de arriscar nem um milésimo do que sobreviveu. Se a Cinemateca foi num passado recente a grande vitrine do governo Lula, que o incêndio sirva para que ela não se torne a grande vergonha do governo Dilma. Que haja mobilização para se inventariar e divulgar todas as consequências do incêndio. Que isso sirva para reforçar a necessidade urgente de reequipar a instituição com recursos e pessoal e dotá-la de condições de trabalho adequadas. E que isso imponha a urgência de reativação imediata do Laboratório da Cinemateca. Com a morte recente do restaurador Chico Moreira, mais do que nunca é preciso que a Cinemateca possa voltar a dispor de infraestrutura para salvaguardar o enorme e precioso acervo audiovisual brasileiro, pois além dela, não restam atualmente mais alternativas.